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Você pode estar absolvido

Qualquer um de nós. No discurso do 5 de Outubro de 2005, o último do seu mandato presidencial, Jorge Sampaio deixava o alerta para um problema endémico da democracia portuguesa: "A corrupção é o escarnecimento da República".

Antes e depois, assistimos a um desfile de casos e impunidades, entre o fax de Macau a chegar ao Bragaparques, os Paquetes da Expo a ancorar no FreePort, do caso Tecnoforma aos conteúdos dos vistos gold. Operação Marquês e Operação Monte Branco, Tancos, toupeiras e magistratura, Ministério Público e Tribunais da Relação, a Banca e administração da saúde, escolas de condução, messes e autarquias, os serviços secretos, a segurança social e a fuga aos impostos, entre tantos outros. Um imparável cardápio de casos com indícios ou provas de corrupção que alimentam relatórios anuais que - ciclicamente - identificam as mesmas causas, riscos e deficiências. O estudo do Conselho de Prevenção para a Corrupção, apresentado esta semana, não conclui coisas diversas desde que apresentou os primeiros dados há 13 anos: há um deficiente controlo em toda a cadeia de decisão da Administração Pública. Portugal tem o Plano Nacional contra a Corrupção 20-24 recentemente aprovado mas, perante a inoperância, sente-se que, nesta matéria, grande parte do poder político continua a preferir viver numa jaula confortável.

Uma jaula de conforto para a corrupção comporta enormes perigos. Deixa os extremismos à solta do lado de fora, a vociferar por olho-por-olho-dente-por-dente, colocando toda a classe política no mesmo saco, alimentando-se do ódio, da repulsa e rejeição, fazendo da parte o todo. Ao falharmos no combate à corrupção, deixamos os inimigos da democracia a alimentarem-se da sua corrosão, para a destruir. Continuamos alinhados com as melhores práticas sem aplicação prática. Somos bons alunos nas teóricas e passamos vexame na execução. Os rankings mundiais no combate à corrupção não mentem. O Estado de direito escapa à justiça porque esta não conclui. Contentamo-nos com uma investigação pelas instâncias formais de controlo, uma mera ideia garantística da justiça. O arquivamento é um negócio fácil. A investigação é um desígnio nobre, sistematicamente preterido por falta de políticas públicas, capacitação e por ausência de meios do MP e dos órgãos de polícia criminal.

Este é o quadro a alterar. A tipificação do enriquecimento ilícito, o fim dos offshore, um sistema de direito premial que não seja anedótico, a protecção dos denunciantes. Temos baixos índices de participação e responsabilidade cívica. Somos capazes de dizer que Portugal é um país de corrupção e que temos uma classe política poluída para, depois, rir entre dentes e dar uma palmada nas costas do amigo que se consegue safar com uma trafulhice, cunha ou benefício indevido. Quantos juízes nunca foram chamados a pronunciar-se sobre casos de corrupção? Os nossos pecados confessam-se aos padres e os crimes aos amigalhaços. Sai sempre uma absolvição.

Artigo publicado no Jornal de Notícias (link is external) a 19 de março de 2021.