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Gisberta não fez nada pelo Porto?

O nome de Gisberta passou a nomear muito mais do que um caso isolado. Ele diz a discriminação estrutural revelada pelo assassinato, a transfobia das instituições, a falta de reconhecimento das identidades trans, mas também a capacidade de a cidade reagir para afirmar os direitos humanos e ocupar as ruas em seu nome.

“Não conseguimos estabelecer uma relação entre a Gisberta e o Porto”. “Achamos que a pessoa em si nada fez em prol do Porto”. Foi assim que Isabel Ponce de Leão, deputada municipal do grupo de Rui Moreira e presidente da Comissão de Toponímia da cidade, reagiu à iniciativa dos coletivos que organizam a Marcha do Orgulho LGBT+ do Porto, em conjunto com a atriz e encenadora Sara Barros Leitão, que lançaram um abaixo-assinado para que seja atribuído o nome de Gisberta a uma rua da cidade.

Gisberta Salce Junior obrigou o Porto a olhar-se ao espelho. Acham pouco? Ou será que é isso que incomoda?

A resposta provoca perplexidade. Entre outras coisas, Gisberta deu ao Porto a própria Marcha LGBT. Naquele mês de fevereiro de 2006, o assassinato de Gisberta provocou uma onda de choque. Não me esqueço de como se soube do crime e de como se tornou necessário transformar a revolta, a indignação e a tristeza em motor de luta. Não me esqueço das concentrações que tiveram lugar no Campo 24 de agosto, junto ao “poço” para onde foi atirada. Não esqueço que foi por causa de Gisberta que, em Portugal, se introduziu a palavra transfobia no nosso vocabulário público, o que aliás provocou discussão no próprio movimento LGBT.

A primeira marcha no Porto nasceu precisamente das solidariedades que se forjaram na reação ao assassinato da Gisberta. No verão de 2006, pela primeira vez, a bandeira arco-íris saía às ruas da invicta em manifestação. Na frente, a segurar a faixa, iam as amigas da Gisberta, com ativistas trans de outras cidades. Envolvido na organização, dinamizei com várias pessoas trans uma oficina de teatro do oprimido, que deu origem a uma peça apresentada na rua, no momento em que a Marcha chegou à Praça D. João IV. Nesse processo, trabalhámos a partir de testemunhos que nunca mais esquecerei, de humilhação quotidiana, de discriminação violenta, de amesquinhamento, de preconceito e ignorância. No fórum, propunhamos às pessoas que nos mostrassem, entrando “em cena”, como reagir e como construir solidariedades.

O nome de Gisberta passou a nomear, ao longo deste tempo, muito mais do que um caso isolado. Ele diz a discriminação estrutural revelada pelo assassinato, a transfobia das instituições, a falta de reconhecimento das identidades trans, mas também a capacidade de a cidade reagir para afirmar os direitos humanos e ocupar as ruas em seu nome.

Pelo que se sabe, por duas vezes a Comissão de Toponímia já votou e já rejeitou a ideia de dar o nome de Gisberta a uma rua. Mas, como insistem os promotores e promotoras do abaixo-assinado, nós precisamos de ruas com nomes como o da Gisberta. Também eu quero uma cidade que reconheça, no modo como nomeia o seu espaço, toda a diversidade que a constitui. Quero um Porto em que quem faz a cidade todos os dias – porque recolhe o lixo ou limpa os cafés, porque constrói os edifícios ou calceta as ruas, porque distribui a comida ou trata dos jardins, porque cuida das crianças ou faz a comida, porque conduz os autocarros ou vende na rua …. – não é remetido à invisibilidade. Quero que haja lugar para ruas e praças com nomes de trabalhadores, de associações, de coletivos, de lutas. Na realidade, que imagem de cidade resulta de um espaço urbano onde há lugar para tantos “homens notáveis”, mas em que praticamente não cabem outros nomes, nomeadamente de mulheres ou de grupos oprimidos? Por que não haveria enquadramento para que o nome Gisberta Salce Junior pudesse figurar numa rua? Por ser uma portuense de origem brasileira? Por ter sido sem-abrigo? Por ser trabalhadora do sexo? Por ser uma mulher trans? Por ser pobre?

Gisberta Salce Junior obrigou o Porto a olhar-se ao espelho. Acham pouco? Ou será que é isso que incomoda?

Artigo publicado em expresso.pt a 20 de março de 2021