Aconteceu no final do mês de outubro de 1979. Pela primeira vez – e, até hoje, a única no nosso país – as trabalhadores domésticas juntavam-se no Pavilhão dos Desportos de Lisboa para realizar o seu primeiro congresso nacional, sob o lema “Dizemos não à servidão”. Nos meses anteriores, o Sindicato do Serviço Doméstico multiplicara reuniões preparatórias e, em junho desse ano, lançara um Inquérito à Opinião Pública, que pretendia formar as delegadas sindicais no contacto com a população, pô-las a socializar, a comunicar na rua, a fazer entrevistas e a distribuir material, a chamar a atenção da sociedade para o Congresso. Há 40 anos, calculava-se existirem em Portugal cerca de 100 mil trabalhadoras domésticas assalariadas – um número não muito distante da realidade de hoje, que andará nas 115 mil. O Sindicato, que começara um percurso de representação destas mulheres, tinha à época 7 mil associadas.
No dia 28 de outubro daquele ano, centenas de “empregadas domésticas” juntam-se em Lisboa para a sessão pública do seu Congresso. Organizações internacionais congéneres marcaram presença no evento. O mesmo fizeram alguns sindicatos e a “Comissão da Condição Feminina”, cuja solidariedade ficaria patente num poema escrito por Maria Teresa Horta, que seria lido como mensagem ao Congresso. O texto, intitulado “Dia de uma criada de servir e seu lamento-calado”, fazia oscilar as estrofes entre as ordens da patroa (“— Maria!/O banho está arranjado?/ Quero a casa toda limpa!/ E o almoço aprontado! // (...)— O menino está lanchado?/ Vai começando o jantar!/ Quero este fato engomado!) e os lamentos da “criada” (“Levantei-me ainda noite/ sono — solto — amordaçado... // Desde as cinco da manhã/ que escovo — limpo / que lavo...”// (...)“Desde as cinco da manhã/ que obedeço/ e me calo...”.)
No segundo dia do Congresso, as trabalhadoras domésticas dividiram-se em pequenos grupos para refletir sobre a situação profissional, familiar e social do seu grupo profissional e sobre as conquistas alcançadas. Formalizado em 1976, depois de alguns anos de reuniões e de luta, as raízes do Sindicato podem ser encontradas, em grande medida, em ações de alfabetização promovidas por organizações como a LOC (Liga Operária Católica) e a JOCF (Juventude Operária Católica Feminina). Na realidade, o Sindicato do Serviço Doméstico era uma organização singular no universo laboral em Portugal, de cuja viabilidade a própria CGTP começou por desconfiar. Desde logo, porque era constituída exclusivamente por mulheres, num panorama em que mesmo nas profissões feminizadas, como os professores, eram eles, os homens, que ocupavam os cargos dirigentes nos sindicatos. Mas também pelo tipo de atividade que desenvolvia, que resultava da própria natureza e características do trabalho doméstico e da vontade de somar à ação reivindicativa um amplo programa formativo para as associadas e a criação de alternativas concretas de organização para a prestação daquelas atividades.
No Sindicato do Serviço Doméstico, cada delegada sindical tinha sob sua responsabilidade não uma empresa, mas um determinado bairro ou freguesia – a intervenção era feita porta a porta, contactando as colegas nas casas onde trabalhavam. Nas férias, promoviam cursos para aprenderem a história internacional do trabalho doméstico e a história da Europa no século XX, para estudarem o Código Civil e o enquadramento legal da sua atividade. Fundaram também uma cooperativa – a Cooperserdo – que permitia arrecadar fundos para a atividade sindical, mas também apresentar uma alternativa de trabalho para as “empregadas domésticas”, com serviço de refeições e de creche, trabalho ao domicílio e lavandarias. Na cooperativa, ao contrário do que acontecia no trabalho feito em casa dos patrões, que era enquadrado pelo Código Civil e não pela lei laboral, as trabalhadoras domésticas tinham o mesmo estatuto que qualquer outro trabalhador assalariado: acesso ao salário mínimo, aos mesmos dias de férias, à mesma proteção social.
O processo de auto-organização das trabalhadoras domésticas entre a década de 1960 e meados da década de 1980 em Portugal é contado num extraordinário livro de Antónia Celeste de Jesus Vieira, publicado pela Afrontamento. Essa obra é o testemunho da luta pela justiça e pelo reconhecimento de uma atividade na qual as relações de poder são muitas vezes encobertas por discursos sobre os “afetos” e pela invocação de uma pretensa “proximidade familiar” que não tem como ser igualitária. É também a história concreta de pessoas que, tendo sido educadas para o silêncio, foram protagonistas de uma extraordinária experiência de ação coletiva, capaz de colocar na agenda do debate e da decisão política o reconhecimento do valor do trabalho doméstico enquanto trabalho.
Esta é, de resto, parte da história de uma luta que ainda não acabou – e também por isso falo dela. O trabalho doméstico continua a ser marcado, no nosso país, pela invisibilidade, pela informalização, pela ausência de representação e de proteção social e por uma desconsideração legal que faz com que não seja enquadrado pelo Código do Trabalho, mas por uma lei própria, onde os limites de horários são maiores, na qual se permite o pagamento abaixo do salário mínimo, menos dias de férias, a ausência de gozo de feriados ou do descanso semanal, um despedimento praticamente livre e uma segurança social de segunda.
Calcula-se que, em todo o mundo, haja mais de 70 milhões de trabalhadoras domésticas, a que se somam muitos outros milhões a trabalhar na área dos cuidados a pessoas dependentes. É um dos segmentos do mundo laboral mais vulnerável à exploração e com piores condições, onde se acumula a desigualdade de classe, de género e resultante da racialização e da divisão internacional do trabalho assente no recrutamentos dos migrantes para setores mal pagos e desprotegidos.
Não são hoje menos necessárias do que antes experiências que deem visibilidade e expressão a esta realidade – e elas vão sendo ensaiadas. É um desafio para o movimento sindical, para o movimento anti-racista, para o movimento feminista, para os partidos. É também sobre isto a greve feminista que acontecerá, mais uma vez, no próximo dia 8 por todo o mundo, incluindo em várias cidades portuguesas. Para que não se esqueça todo o trabalho invisível e as mulheres que o fazem.