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Elas, as que “não trabalham”

Foto de Paulete Matos
Foto de Paulete Matos

A decisão é histórica. O Supremo Tribunal de Justiça condenou um homem ao pagamento de 60.782 euros à ex-companheira pelo trabalho doméstico desenvolvido por ela ao longo de quase 30 anos de união de facto. Artigo de José Soeiro.

A sentença contraria assim o entendimento anterior do Tribunal de Barcelos, sobre o mesmo caso, que havia considerado que nenhum pagamento era devido à mulher por aquele trabalho, dado que “a sua prestação como contribuição para a economia comum configura-se como cumprimento espontâneo de obrigação natural”.

No seu acórdão, o Supremo destrói este argumento: “não é possível considerar que a prestação do trabalho doméstico e os cuidados, acompanhamento e educação dos filhos correspondem, respetivamente, a uma obrigação natural e ao cumprimento de um dever”. E acrescenta: “desde há muito que a exigência de igualdade é inerente à ideia de justiça, pelo que não é possível considerar que a realização da totalidade ou de grande parte do trabalho doméstico de uma casa, onde vive um casal em união de facto, por apenas um dos membros da união de facto, corresponda ao cumprimento de uma obrigação natural, fundada num dever de justiça”. E ainda: “o exercício da atividade doméstica exclusivamente ou essencialmente por um dos membros da união de facto, sem contrapartida, resulta num verdadeiro empobrecimento deste e a correspetiva libertação do outro membro da realização dessas tarefas”.

Por contrariar entendimentos e práticas profundamente incrustadas na nossa sociedade, independentemente do modo concreto como quantifica o trabalho, a sentença deve ser assinalada. Pelo seu valor legal, ela contribui para algumas transformações essenciais que precisamos de consolidar no modo como abordamos as questões do trabalho.

1. Ampliar a noção de trabalho

É frequente reduzir o trabalho ao emprego formal, quer nas representações numéricas (as estatísticas oficiais), quer nas representações simbólicas (as imagens que produzimos sobre o que é o trabalho), quer nas representações políticas (que organizações representam quem trabalha?). Ora, a classe-que-vive-do-trabalho (a fórmula é do sociólogo Ricardo Antunes) sempre foi muito mais diversa do que as suas representações mitológicas. O antropólogo David Graeber, recentemente falecido, chamava a atenção por exemplo, para o facto de que, no pico da Revolução Industrial em Londres, “os bairros da classe trabalhadora abrigavam muito mais empregadas domésticas, engraxadores, lixeiros, cozinheiras, enfermeiras, motoristas, professores, prostitutas e vendedores ambulantes do que empregados em minas de carvão, fábricas têxteis ou fundições de ferro”.

De facto, a concepção dominante de trabalho tem sido marcada, em todos os quadrantes, por duas grandes distorções, que impedem que se considere a sua verdadeira extensão.

A primeira é o etnocentrismo, que historicamente invisibilizou o trabalho escravizado, expropriado pelo capital no quadro de relações coloniais, em lugar de ser explorado no quadro de uma relação salarial. O mesmo etnocentrismo laboral que desconsiderou a centralidade do trabalho escravizado, tende hoje a invisibilizar o trabalho migrante e clandestino que acontece nas margens da sociedade salarial ou o trabalho expropriado nas prisões, por exemplo. Mas é impossível analisar o capitalismo sem ter em conta essas dimensões da apropriação da riqueza e esses segmentos da classe trabalhadora.

A segunda distorção é o androcentrismo, que invisibilizou historicamente todo o trabalho doméstico e de cuidados, assumido pelas mulheres, ao ponto de não ser incomum, ainda hoje, dizer-se de alguém que está em casa a prestar cuidados informais ou a fazer trabalho doméstico que essa pessoa “não trabalha”. Ora, este trabalho é essencial à manutenção da vida e à reprodução da força de trabalho e do próprio sistema económico. É impossível compreender este último sem considerar a imprescindibilidade deste colossal volume de trabalho não remunerado.

2. Desnaturalizar a divisão sexual do trabalho

Ao contrário do que defendeu o Tribunal de Barcelos na primeira decisão sobre aquele caso, não há nada de “natural”, nem de “espontâneo”, na enorme desigualdade na realização do “trabalho doméstico”. Trata-se, pelo contrário, de uma laboriosa construção do sistema patriarcal, que encaminhou os homens para o chamado “trabalho produtivo”, fora de casa, crescentemente enquadrado por relações de emprego, e as mulheres para o “trabalho reprodutivo”, associado à esfera doméstica e sem qualquer remuneração. Esta hierarquia sexual reproduziu-se também no campo do trabalho assalariado, quando as mulheres passaram a aceder ao emprego e quando algumas das tarefas dos cuidados se profissionalizaram. Por isso, também não há nada de natural na circunstância de serem as mulheres a esmagadora maioria das enfermeiras, das educadoras de infância, das trabalhadoras da limpeza ou das funcionárias dos lares, para dar apenas alguns exemplos. A decisão do Supremo Tribunal dá um contributo valioso para desconstruir estes pressupostos e para afirmar que a estrutura patriarcal, que estabelece esta divisão sexual do trabalho, pode e deve ser transformada, porque é nela que assenta quer a sobrecarga das mulheres no espaço doméstico quer a desigualdade salarial e a desvalorização das profissões mais feminizadas no trabalho assalariado.

3. Quantificar o trabalho doméstico e dos cuidados, para criar mecanismos de reparação

Uma decisão do tribunal não aponta necessariamente os modelos de futuro (eu diria, por exemplo: distribuição de emprego por todos, repartição igualitária do trabalho doméstico, mais serviços públicos de cuidado e horários de trabalho mais curtos), mas incide sobre os mecanismos de reparação de um modelo injusto de desigualdade numa relação passada. Ao calcular quanto vale o trabalho prestado por aquela mulher em sua casa, o Supremo Tribunal está a enfatizar que este trabalho tem um valor, também económico. De facto, como sublinha o acórdão, o património acumulado pelo homem (vamos imaginar: uma casa que tivesse comprado em seu nome, por exemplo) não é produto apenas do seu emprego, mas de todo o trabalho não remunerado de que ele dependia e beneficiou – e que ela fez gratuitamente. Se isto não fosse tido em conta no momento da separação, o que a Justiça estaria a fazer seria tremendamente injusto, porque estaria a desconsiderar totalmente (como aliás se tem feito) que o trabalho dela “traduz-se num enriquecimento enquanto poupança de despesas” para ele.

Ora, como tem dito a própria Organização Internacional do Trabalho, contabilizar, quantificar e considerar o trabalho reprodutivo nas estatísticas do trabalho e na aferição da riqueza produzida (não apenas numa unidade doméstica, mas também no PIB de um país) é uma condição fundamental de visibilidade, mas também da existência de políticas públicas capazes de repararem esta desigualdade. Como tendemos a não dar valor ao que não é contabilizado, o precedente aberto pelo acórdão é marcante. Não para que desta contabilização decorra uma monetarização e uma mercantilização deste trabalho – o que seria um péssimo caminho, de extensão do reino da mercadoria a todos os domínios da vida social e, poderia, até, ser utilizado para legitimar a remissão das mulheres para o espaço doméstico, agora com uma pequena “recompensa”. Mas é promissor porque precisamos de ter em conta o valor daquele trabalho para que seja clara a urgência de distribuí-lo entre toda a gente. Isto é, para que seja repartido no contexto familiar, entre homens e mulheres, mas também para que seja socializado sob a forma de equipamentos e respostas sociais públicas (lavandarias, creches, apoio domiciliário, equipamentos sociais…), instrumentos fundamentais para qualquer política de igualdade neste campo.

Sei bem que não digo nada de novo. A urgência destas transformações tem sido uma das prioridades do movimento e dos estudos feministas. É também uma das razões pelas quais, desde 2017, existe a “Greve Feminista Internacional”, que neste próximo dia 8 de março, de várias formas, se fará ouvir, somando a estas muitas outras razões de luta pela igualdade. Mas até por isto, nunca é de mais insistir.

Artigo publicado em expresso.pt (link is external) a 5 de março de 2021