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“Como se defende o trabalho digno sem acabar com normas amordaçantes que ofendem a dignidade?”

O Primeiro-Ministro esteve esta manhã na reunião do grupo parlamentar do Partido Socialista para anunciar as propostas de lei debatidas em Conselho de Ministros, entre as quais a chamada “Agenda para o Trabalho Digno”.

Essa “agenda” foi organizada pelo governo de modo a desembrulhar as propostas no número máximo de medidas. Parece que já vai em 68. …

Em tantas dezenas de ítems daquele documento, não houve espaço, contudo, para algumas singelas propostas como a que hoje debatemos.

O documento que o governo pretende brandir nas próximas semanas é marcado sobretudo por intensas e notórias ausências.

Como é que se defende o trabalho digno sem acabar com normas amordaçantes que ofendem a dignidade das pessoas que trabalham que só têm como propósito mostrar que os seus direitos não valem nada, como a norma que impede os trabalhadores de contestarem despedimentos ilícitos e que foi mantida na lei por decisão do PS e do PSD há menos de um mês?

E como classificar as normas da troika sobre despedimentos e sobre horas extra se não como ataques à dignidade do trabalho?

E como classificar as normas da troika sobre despedimentos e sobre horas extra se não como ataques à dignidade do trabalho?

Vejam bem o exemplo que hoje debatemos e que será votado amanhã.

Vem de 22 de janeiro de 1915 - de 1915! - o diploma republicano assinado por Manuel de Arriaga que fixou na lei portuguesa os limites ao horário de trabalho. Essa lei, diferenciada para a indústria e para o comércio, tinha uma norma sobre o tema que hoje debatemos. Ela estabelecia que sempre que houvesse serviço extraordinário no comércio, cada hora de trabalho suplementar seria paga “pelo dobro” da hora normal.

Não vale a pena fazer toda a história destas regras sobre as horas extra. Mas vale a pena assinalar que vem de 1919, há mais de 100 anos, a lei que estabeleceu o máximo de 8 horas por dia para o comércio e a indústria e que também aí, nessa lei, se estabelecia o pagamento das horas extra pelo dobro.

Tivemos o fascismo, que manteve o pagamento pelo dobro das horas extra em dia de descanso semanal, e reduziu para 50% a majoração nos restantes dias. E passamos décadas, uma Revolução, a normalização democrática, o FMI, a década de 90, e chegámos a 2012 com as horas extra a serem pagas pelo dobro em dia feriado, com uma majoração entre 50% a 75% nos outros dias, e com uma compensação suplementar por via de um aumento do tempo de descanso.

Teve de vir a troika e o mais agressivo governo da direita, em 2012, para que este património com mais de um século fosse deitado ao caixote do lixo.

Teve de vir a troika e o mais agressivo governo da direita, em 2012, para que este património com mais de um século fosse deitado ao caixote do lixo

Com as alterações introduzidas pelo PSD e pelo CDS em 2012, o descanso compensatório foi eliminado. Ou seja, se num ano um trabalhador fizer 160 horas de trabalho suplementar, passou, desde 2012, a trabalhar mais 5 dias sem receber nada por isso.

Mas além disso, foi também reduzido o valor pago pelas horas extra. Cortou-se o valor para metade. Na primeira hora, em vez de uma majoração de 50%, 25%! Nas horas seguintes, em vez de um acréscimo de 75%, 37,5. Em dia feriado, em vez de ser pago pelo dobro, a majoração passou a metade.

O que dizer desta lei da troika se não que é uma ofensa à dignidade do trabalho? Se não que é uma ofensa a um património do mundo do trabalho que a troika quis aniquilar?

E o que dizer de um Governo do Partido Socialista que se une à Direita para manter estes cortes, ao mesmo tempo que faz a publicidade de uma agenda para o trabalho digno que pretende manter não apenas este corte, mas também o corte da troika nos dias de férias ou nas compensações por despedimento?

E o que dizer de um Governo do Partido Socialista que se une à Direita para manter estes cortes, ao mesmo tempo que faz a publicidade de uma agenda para o trabalho digno

Não farão as férias, a proteção contra os despedimentos, o combate ao abuso das horas extra parte de uma agenda para o trabalho digno?

Segundo dados oficiais do INE, há cerca de meio milhão de trabalhadores que realizam horas extraordinárias no nosso país, numa média de 315 horas por ano. O corte para metade do seu valor teve assim um efeito duplo. Por um lado, diminuiu os rendimentos destes trabalhadores. Por outro, o embaratecimento do trabalho suplementar e a eliminação do descanso compensatório tem sido uma medida contrária à criação de emprego e é um incentivo ao preenchimento de postos de trabalho com horas extraordinárias. Se porventura todo o trabalho suplementar fosse transformado em novo emprego, isso corresponderia a 64 mil postos de trabalho. A liberalizalização e o embaratecimento das horas extra inibem a criação deste emprego. Já para não falar no efeito na vida pessoal e familiar.

Não fará parte de uma agenda do trabalho digno o combate ao prolongamento dos horários?

Nós entendemos que sim. Entendemos que a uma agenda do trabalho digno incumbe, até por imperativo constitucional, a promoção do emprego e não a manutenção de medidas, como estes cortes da troika que hoje debatemos, que inibem a distribuição do emprego existente.

O Partido Socialista tem hoje a oportunidade concreta de mostrar que está disponível para o diálogo e para defender este património republicano no mundo do trabalho.

Se optar por juntar-se à Direita para manter estes cortes da troika, do PSD e do CDS, na lei do trabalho, estará a dar uma prova de intransigência negocial, de ausência de abertura para medidas elementares de justiça e de incompreensível indisponibilidade para dialogar com a esquerda no mais básico do mais básico: a defesa da dignidade do trabalho contra as ofensas que a Direita introduziu na lei para humilhar quem vive do seu salário.